domingo, 31 de maio de 2009

Gasolina

SEG. 06h30. O despertador, aquele mesmo que estava desaparecido há uns 3 meses, soou com certa delicadeza e me tirou do sono profundo, lançando-me num estado de letargia e depressão.
06h43. Acendo a luz do despertador pois, apesar de as venezianas de madeira estarem escancaradas, o horário de verão me faz levantar com as estrelas ainda visíveis.
06h45. Levanto fazendo a cama ranger e, após uma mijada ardida e a conta gotas, deixo a água morna do chuveiro me despertar a derme. Fecho a torneira e enrolado na toalha sigo até o quarto sentindo o ar frio me fechar os poros. Sem acender as luzes alcanço um par de meias e uma cueca e uma par surrado de jeans e uma camiseta cinza. Ela me observa sem se mover e com a respiração pesada de quem ainda deveria estar dormindo. Eu juraria que estava. Já vestido, com as chaves e o telefone celular em mãos, abro a geladeira e me sirvo um copo da garrafa de 1 litro de iogurte de morango. Bebo de um só gole, sinto náuseas e saio sem ter mastigado nada sólido.
07h03. Abro o portão da garagem pressionando o botão do controle remoto e entro no meu renault preto que, para meu completo emputecimento, não pega quando viro a chave na ignição. 

sábado, 30 de maio de 2009

O camelo e a flor

Um camelo alto e barbudo passeava pelo deserto. Em verdade o camelo se arrastava pelo deserto, usando as últimas reservas de água que sua corcova trazia, coisa de copo e meio desses pequenos de boteco. Desconheço a relação de consumo que um camelo consegue desenvolver, mas diria que aquela porção de água já era da reserva. E o diabo do camelo era desses parrudões, no mínimo 1.8, ou seja, bebia pra caralho. E o camelo seguia firme, em quinta marcha, quando percebeu uma pequena flor a coisa de 200 metros do ponto onde estava. Apontou o focinho em sua direção e partiu ainda mais rápido. Pensou que aquela florzinha frágil só poderia estar postada sobre um enorme manancial de água limpa e fresca, era sua salvação. Enganou-se. Era só areia, fina, seca e quente. 
– Como você consegue se manter incólume nesse deserto de ardor inclemente?! – desesperado, o camelo. 
– É fé. – em tom pueril, a flor . 
– Fé em que?! – e pensou no palavrão mais libertador, o camelo. 
– Na providência divina, e isso me enche de sentimento que se transfigura em água. – quase levitando, a flor. 
E o camelo, urdido em seu próprio desespero, escancara a boca e arranca, com os dentes que lhe restam, a pequena flor da areia. Mastiga calmamente, expondo a maior peculiaridade dos artiodátilos, sacia a sede de semanas sem água e resmunga, ainda com restos de pétalas na boca:
"e lá vai deus sem querer saber de nós
saibamos pois
estamos sós".

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Vinho barato

Acabo de voltar do jantar de uma confraria da qual faço parte e que promove, regularmente, encontros mensais. Os comensais confraternizam-se, alcoolizam-se, riem-se e sorvem-se por trás de olhares fundos, inclusive para os fundos. É de praxe que os convivas assentem ao recinto de posse de uma (ou mais, preferencialmente) bebida que se harmonizará com o menu a ser ofertado pelo anfitrião da vez. Passo, a caminho do encontro, em uma delicatessen, ou seria um empório?! Não, passo mesmo numa padaria de nenhuma categoria e, na maior cara de pau, pergunto pela prateleira de bebidas. Resisti a solicitar a carta de vinhos, seria rudeza de minha parte. 
Corro a vista por três ou quatro garrafas de qualidade aceitável e escolho a mais barata, um Cabernet argentino. Apanho uma coca-cola de dois litros para as crianças e no balcão de salgados peço meia dúzia de pães de queijo. Estranho quando a balconista me pergunta, já ensacando meu pedido, se é para beber. Mas em segundos ela esclarece: – quando pede assim pouquinho é para criança. Então percebo que não era para beber e sim para bebê. Que culpa a minha.
Meu vinho é recebido como o destaque da noite, e guardado para ser servido após aquelas tantas garrafas de vinhos comuns. Todos, com exceção de um Marcus James malandrão, melhores que o meu.
O menu, aberto por rodadas de fondue, com intervalos para manutenção das traquitanas de cocção, é fartamente deglutido pelos confrades. Quando à altura dos serviços de sobremesa, meu vinho é aberto, não sem antes sofrer com a falta de habilidade no manuseio do saca-rolhas cibernético, e passo, então, a saborear uma taça do mesmo, evitando qualquer daquelas viadagens de avaliar a lágrimas do vinho, seu bouquet ou qualquer dessas merdas que o valha. Achei péssimo. Me levantei com a taça nas mãos, fui até a cozinha, derramei seu conteúdo na pia e, após um rápido jato d'água, enchi com a boa, velha e infalível coca-cola.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Golpe


Tenho que confessar que, apesar do pouco tempo desde que iniciei a empreitada, tive que dar uns golpes na atualização do blog. Posts diários dão um trabalho grande, aliás, danado. E acabei juntando uns posts no mesmo dia e trocando as datas de publicação. Foi fácil, mas prefiro confessar a malandragem. Era isso, confissão.

PS: Minha barba?! Sumiu. Um milagre chamado Mach3.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Por detrás dos livros 1

A senha, por favor. O silêncio que pairava opressor e abafado foi dissipado pelo som seco das seis teclas sendo pressionadas com rapidez por um único dedo da mão direita. Ela me dispensou um obrigado entre tímido e burocrático, recolheu os três títulos que pendiam sobre o balcão e me deixou a passos lentos e ruidosos. O solado de borracha de seus sapatos vermelhos crepitava contra o piso gasto de paviflex amarelado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Outros sons

Contrabaixo suingado acompanhado de um duo vocal feminino, solos de guitarra e bases com pedal wah-wah. Cozinha marcada por batera percussiva. Repertório brasileiro com gana. Cerveja. Pão com pernil e carne seca. Cebola. Zonzeira. Assovios esparsos. Flashes invasivos. Mandioca frita. Vozes agudas, excessivas.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A morte em branco e amarelo

O branco dos cabelos escorridos que pendiam do topo daquele rosto plácido, que os males hepáticos tingiram de amarelo, encontrava um símile cromático nos chumaços de algodão que tapavam as narinas. Brancos também eram os lençóis curtos, infantis, que lhe cobriam parte de tronco e lhe expunham as veias e as manchas escuras e os pés inchados, disformes. Amarelos eram os rostos dos que lhe entoavam canções sacras e preces arrastadas, sentidas. Branco era o espaço imaginário, celestial, que os presentes reservavam para aquela que lhes deixara horas antes. Amarela, covarde, vil, abafada. Tão covarde que ela, a morte, não acompanha aquele que fenece, mas persegue aquele que permanece, sem norte, fodido.

domingo, 24 de maio de 2009

O tempo


Nada resiste ao tempo, nem os dentes.

sábado, 23 de maio de 2009

Sábado tem post?!

Pensei que, talvez, o blog devesse ter um dia de folga. Se for isso mesmo penso que o sábado seja um bom dia de folga. Garantia contra eventuais maus humores provocados por uma eventual ressaca. Mas o que fazer entre 17h e 21h, período imediatamente após aquele cochilo além da conta, resultado de duas ou três caipirinhas, meia dúzia de cervejas long neck e uma lapada de feijoada. Cá estou, oco, como se os pensamentos todos tivessem se esvaído na longa mijada pós bode. De rabo de olho leio no jornal sobre a mesa que morreu Zé Rodrix. O cara me perseguiu nos últimos dias com sua (e de ilustres colegas) composição "Mestre Jonas". Lisérgica, rural-eletrificada, e sobretudo, preguenta, daquelas que colam e que a gente não pára de cantar durante dias. Meus alunos incrédulos que o digam.
Vou procurar um resto de ovo de páscoa que me livre dessa lembrança amarga que a mistura feijoada + cochilo me pregou na boca.
Salve Zé.
ps: mudei de idéia, sábado é ótimo dia para expurgar umas palavras.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Coisas que escrevi


Meu irmão

Eu tinha lá pelos meus três ou quatro anos quando reparei pela primeira vez que meu irmão vivia olhando o mundo pela janela do carro. Um ano, sete meses e quinze dias. Era a diferença que tínhamos de idade, ele mais velho. Quando estava com dez meses teve que parar de mamar porque minha mãe ficara grávida de mim. Desde muito cedo disputamos a atenção dela. Quando ela ficava um pouco mais com meu irmão eu inventava logo um choro sem motivo, mas, que me rendia alguns instantes de vantagem. Sempre achei que o tempo ao seu lado era precioso, só não sabia porque, eu apenas sentia. Meu irmão também sabia disso e sempre tirou proveito de sua condição de primogênito para estar próximo dela. Herdei seu berço laqueado branco com protetores de algodão recheados de espuma. Aliás, herdei quase tudo que podia apesar de ser menina. Até cuecas eu usei por falta de calcinhas limpas. Junto com o berço vieram as grades e a desvantagem de precisar sempre de alguém para me desvencilhar delas. Meu irmão ganhara uma nova cama pintada de branco lavado, uma espécie de pintura aguada que precisava de um nome que lhe rendesse presença nas boas lojas de móveis e que esteve na moda durante alguns anos de nossa infância. Trinta e dois centímetros do chão eram os únicos obstáculos que o separavam da liberdade. Ele escapava toda noite e se metia, fingidamente sonâmbulo, por entre minha mãe e meu pai. Tinha o estranho hábito, que hoje sei bem que não era nada estranho, de se deitar atravessado na cama. A cabeça encostada em minha mãe e os pés, principalmente os calcanhares, divididos entre os olhos, o nariz e a boca de meu pai.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Outras palavras

Uma brisa

 

A vida é uma brisa que sai pelas narinas,

Morna e profunda nos sonhos juvenis,

Seca e ofegante nos trêmulos passos da subida,

Acre e ocre nos bigodes branco neve.

 

A vida é uma brisa que sai pelas narinas,

Gasta na contagem regressiva do suicida,

Aguda no esforço muscular da pneumonia

Invisível no intervalo opressor de uma apnéia.

 

Siul Rasec (14.06.2007)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Estado de alerta



Em criatividade, quando tratamos da solução de problemas, uma importante etapa para alcançar bons resultados é conhecida como incubação. É uma fase posterior à definição e elaboração da situação problema e é apontada por vários autores como sendo uma fase inconsciente do processo criativo. Entretanto, acredito que o êxito só é alcançado quando nos colocamos em estado de alerta para alcançar a solução da questão. É o que ocorre ao indivíduo que deseja trocar seu velho Fiat Palio por um tecnológico Citroen C3. Onde quer que ele vá só encontra modelos C3 pela frente. É impressionante como nunca havia percebido tantos carros daquele tipo em sua cidade. Na verdade os carros sempre estiveram lá mas o estado de alerta não havia sido acionado para a resolução daquele problema (a troca de carro). 
É nessa fase do processo que me encontro agora, em busca de soluções para definir algumas lacunas que ainda persistem em meu projeto. Liguei a chave de alerta e só enxergo C3 pela frente. Não, não estou trocando de carro. Tenho,  antes, um livro para escrever.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O dia depois do início

Após estrondoso lançamento, cheio de manifestações de apoio, comentários em blogs, twitters, facebooks, orkuts e sabe-se lá onde mais, volto para falar um pouco a respeito do projeto. 
Desde que concluí o mestrado, e já se vão uns anos, mudei minha relação com as palavras lidas e escritas. Durante anos usei a piada (sem graça) dos diretores de arte para justificar problemas nos textos das peças publicitárias e desobrigar-me da responsabilidade: – O texto para mim é só uma mancha!
Na pesquisa para construção de minha dissertação me vi cercado por caracteres textuais, ora nas minhas leituras, ora nas minhas escrituras. Terminei o trabalho, fiz a defesa, fui aprovado e nunca mais deixei que as palavras se afastassem mais que alguns pares de horas. Leio compulsivamente, escrevo menos, bem menos. Decidi, pois, equilibrar essa relação: escreverei um livro.
Que livro? Livro técnico? Design? Não. Mas isso é assunto para outro post, afinal serão mais de 700 pela frente. 

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O início de tudo



Tenho filhos, dois, lindos. Um menino, de 9 anos e, com pouco mais de 7 anos, uma menina de olhos claros como os da mãe, e os da mãe da mãe.
Plantei algumas árvores, uma ruma de pequenos arbustos, hortaliças, pés de pimenta, uma bananeira, meia dúzia de palmeiras, um pinheiro - ex árvore de natal - que virou um absurdo de árvore, e mais um sem número de outras espécies vegetais.
Faltou o livro. Ainda não escrevi um livro. 
Como professor escrevi uns capítulos. Como designer planejei quase meia centena de capas e mais meia centena de projetos gráficos. Como autor de projetos publiquei 6 títulos de uma coleção de livros sobre restaurantes. Mas, escrever eu não escrevi. Um inteirinho não.
Hoje completo 38 anos e resolvi iniciar o projeto que completará a tríade FILHO - ÁRVORE - LIVRO. Inspirado por um entrevista do cineasta Fernando Meirelles - que, cansado de fazer filmes publicitários, percebeu que precisava fazer um filme de longa metragem antes dos 40 anos de idade, ou não mais o faria - dou por inaugurada uma jornada de exatos 731 dias até o lançamento do livro que escreverei.
Posso ser acusado de leviandade, despreparo, insensatez. Assumo os riscos.
O projeto inclui a documentação e publicação de fotos minhas (posts diários) e produção de material em vídeo (publicado de tempos em tempos).
É isso. Vamos em frente.